segunda-feira, janeiro 16, 2012

Entrevista com o secretario de Desenvolvimento Urbano de Salvador (2009)

Esta entrevista com o secretário de Desenvolvimento Urbano de Salvador é antiga, datando de 19 de maio 2009; porém, é reveladora da falta de reconhecimento do valor do patrimônio histórico em geral e do patrimônio industrial em particular. Para os políticos brasilieiros, o valor histórico (ou cultural) é apenas um ato administrativo, resumido no simples tombamento. Sem tombamento não há valor. 

A entrevista trata do decreto de desapropriação de imóveis numa área de 324 mil metros quadrados na orla de Salvador que implicaria na demolição de prédios históricos, incluindo Fábrica Luiz Tarquínio, marco do início da industrialização nacional. Felizmente, o prefeito João Henrique Carneiro (PMDB) recuou diante de protestos de moradores e anulou o decreto. 



Cartão postal do Empório Industrial do Norte


Leia a entrevista:

(link da publicação) 

Terra Magazine - A verdade é que a sociedade jamais é verdadeiramente chamada. No caso desse decreto da Cidade Baixa, a sociedade foi convocada para discutir?
Antonio Abreu - Se você chamasse a sociedade, vamos pontuar: a sociedade vai ser chamada. Nós não fizemos nada, nós congelamos a imagem. A imagem tá congelada.
(...)
A questão, objetivamente, que nós temos que tratar, é a seguinte: qual é o projeto para a Cidade Baixa? Queria que o senhor definisse também o que é "socializar a orla". Qual o significado disso?
Que as pessoas tenham a oportunidade de ver, tanto quanto aquele cidadão da Vitória que está vendo a Baía de Todos os Santos... Mas...

Não tem que "socializar" a Vitória? Não é a lógica da Cidade Baixa?
Não, senhor.

Não vai demolir nada?
Claro que vai.

Para quê? 
Para nada. Para você socializar a Baía de Todos os Santos.

Mas, secretário: o corredor da Calçada, por exemplo, que é histórico...
Histórico, não...

Tem casarões históricos. 
Os que são tombados pelo Patrimônio são a Fratelli Vita... E o Iphan está conosco nessa história. Deixa eu registrar uma coisa: quando diz que Salvador não tem estrutura patrimonial...

Não, não tem.
Mas a estrutura é do Iphan.

Mas ele não foi consultado no caso desse decreto.
Quem foi que disse isso?

Isso saiu nos jornais.
Eu não fui formalmente...

Mas, informalmente? Para o nosso internauta saber: é que os baianos têm aquela coisa da informalidade, mas parece que são dois ou três senhores que decidem tudo. Só para deixar claro: Salvador não tem nenhum órgão formalmente constituído para cuidar dessa questão de meio ambiente, cultura, não tem constituído legalmente. Não tem corpo técnico para tal. 
Tem, tem. Desculpe, mas tem.

Com poderes designados para tal, não tem. 
Tem. A SMA, a superintendência de meio ambiente, nós temos lá inclusive com o senhor Luiz Antunes, que é um dos maiores profissionais...

De meio ambiente, mas e a coisa chamada cultural? 
...Isso em Salvador, que é uma cidade tombada pelo patrimônio da humanidade, o Iphan determina todas as regras básicas. Tanto é que, no próprio PDDU, determinadas decisões relacionadas à implantação de qualquer tipo de equipamento, o Iphan se pronuncia. Você conhece aqui aquele negócio que é a "Tarzan", daqueles galpões?

O senhor se refere à antiga fábrica Luiz Tarquínio (do século XIX).
Deixa eu explicar: existem na Cidade Baixa antigas fábricas já completamente...nem teto tem... Hoje elas estão sendo, simplesmente, depósitos de containeres. Inclusive, nós pretendemos até fazer uma legislação específica sobre isso. Inclusive entrei em contato com o secretário da Infra-Estrutura para evitar que containeres circulem naquela área dentro de caminhões, porque o asfalto não foi feito para isso. Então, nós estamos tendo que... porque eles consideram aquela área que ninguém dava valor, essa coisa toda, um depósito de containeres.

A prefeitura pretende demolir a fábrica de Luiz Tarquínio?
Antonio Abreu - Rapaz, se não for tombado historicamente e tudo, dentro do processo, sim.

Mas é uma fábrica que, mesmo que não seja tombada, tem uma importância histórica para a cidade, porque fez uma das primeiras vilas operárias do país. 
A Vila Operária é do outro lado.

A Vila é do outro lado, mas a fábrica tem um valor histórico para o País. 
Quem vai dizer que é valor histórico é o Iphan.

É inegável que tem valor histórico. O senhor sabe a importância daquela fábrica de Luiz Tarquínio para a história da cidade?
Eu sei, eu sei... Veja só, meu amigo... A cidade cresce em função de vários fatores, de vários eventos, vários personagens que são criados... E esses personagens... Se você fizer uma escavação, como acontece naquelas regiões da África, você vai ver uma cidade embaixo, outra cidade em cima, porque o processo é dinâmico.

Empório Industrial do Norte em atividade com vila operária contígua [DCFH - Universidade Estadual de Feira de Santana - UEFS]

Mas grande parte do mundo hoje...
Aquilo ali, historicamente, não sei se tem valor histórico... Alguém tem legislar sobre alguma coisa. Eu acho muito interessante. Veja só: com toda sinceridade e respeito, ele teve um fator realmente relevante, foi ali que os grandes coronéis exploravam os seus empregados...

Exatamente por isso é bom conservar...
Veja só: essa vila tem um contexto histórico espetacular. Foi um dos primeiros projetos no Brasil, não sei se você sabe disso, de socialização das relações trabalhistas. Porque uma vila onde o trabalhador tinha cooperativa, assistência médica...

Escola...
Isso aqui eu acho um monumento histórico.

Mas o senhor está se contradizendo. Essa vila operária girava em torno da fábrica. 
Mas, meu amigo, o que vou fazer com aquela fábrica?

É isso que a gente quer saber!
É um depósito de containeres!

Mas o que vai fazer?
Ahhh, vou fazer o seguinte, mais do que isso. Primeiro, devolver ao mar o que roubaram do mar.

Isso no século XIX...
Não, não... Eles aterraram muitas coisas ali naquela praia do Cantagalo... eu vivi ali, tomei banho de mar muitas vezes... Você tem determinadas coisas que até entraram mar adentro, uma espécie de píer. A gente tem que devolver isso pra população, pra que a população faça uso disso. Você quer ver uma coisa que é histórica e que jamais será mudado? O campo de futebol do Mont Serrat!

É uma visão meio demagógica. O senhor está fazendo isso pra agradar aos jogadores de futebol...
(ri) A discussão tem que ser muito centrada no seguinte: algumas coisas são emblemáticas. Aquele campo de futebol é emblemático. Você não conhece um itapagipano que não tenha jogado ali. Que não tenha passado ali ou que não tenha ido assistir a um jogo.

Aquele campo é mais importante do que a fábrica de Luiz Tarquínio?
É gente, tem vida! Aquela fábrica só tem pedaços... tá caindo...

Enroladeiras na Empório [DCFH - Universidade Estadual de Feira de Santana - UEFS]

Mas é a história. A história é isso! Se for levar por aí, o Pelourinho não tem sentido de existir. 
Não... Não... Peraí...

No Pelourinho, os humanos, as pessoas não foram ouvidas na reforma e deu naquilo. 
Nós vamos trazer pessoas, algumas inclusive estão se oferecendo pra participar. Entendeu? Vamos formar um grupo formal. Todo processo é co-participativo.

Cidade Baixa. Na região a ser desapropriada, o que teremos ali? Praças ou prédios?
Nenhum prédio na área, a não ser aqueles prédios que têm tombamento.

O que será construído na região?
Áreas de benefício público.

O que isso significa?
Significa praças, significa equipamentos comunitários, calçadões e praias, pra que as pessoas possam usar...

Serão desapropriadas residências?
É possível que sim. Certamente que sim.

Com que dinheiro a prefeitura vai pagar?
O recurso é o seguinte. A equação do dinheiro não é equação de prefeitura. Nós temos vários instrumentos que geram dinheiro. A prefeitura é hoje dona de um patrimônio de imóveis...

Há uma discussão, no Brasil, sobre precatórios. Como as pessoas vão ser pagas?
Precatório, não. As pessoas serão realocadas num raio pequeníssimo em relação aonde estão, indo pra um tipo de imóvel de uma qualidade muito superior ao que elas estão.

As pessoas serão indenizadas, realocadas?
Realocadas em espaços mais qualificados.

E se a pessoa disser: eu não quero ser realocada?
O poder público, independentemente, nesse contexto, decretou de utilidade pública.

A Fundação Mário Leal Ferreira não tem especialista em patrimônio histórico?
Patrimônio Histórico é o Iphan.

Mas como é que a prefeitura não tem um corpo técnico pra fazer uma intervenção dessa? Oficialmente, você não tem poder legal pra fazer uma intervenção dessa.
Mas, à medida que a gente não tenha, a gente tem que buscar onde tem, percebeu? A nossa função... Nós somos os animadores do processo. A parte do patrimônio histórico? O meu parceiro é o Iphan. E o Ipac, instituição do governo. Nós discutimos a cidade, o patrimônio da cidade, o que tem que ser feito...

Por que a cidade está absurdamente estrangulada? Se tudo é tão...
A cidade problemas de mobilidade urbana? Tem. A cidade tem um metrô que está se arrastando aí... Tem uma série de coisas.

Perguntas de internautas: o metrô. Se essa não é a prioridade, qual é a prioridade? Qual é o casamento entre este projeto e esse processo todo? Como está sendo pensado de uma maneira ampla?
Você tem razão quando você coloca, com muita propriedade, que as coisas vão se modificando, vão se modificando, daqui a pouco você tem um monstro. Mudou pra um pensamento, mudou pra outro pensamento, daqui a pouco aumentou aí e, realmente, é um problemão. Gastou-se uma fortuna. O prefeito está realmente determinado a resolver isso, de qualquer sorte, pra que esse metrô funcione. É um absurdo que não possa funcionar. O Centro, a gente sabe que se errou muito. A gente tem minimizar os problemas.

Quando o senhor pretende apresentar o projeto da orla da Cidade Baixa?
Em outubro.

Algumas perguntas de internautas. Como foi resolvido o conflito de verticalização de prédios na Orla e o tombamento de parte dela pelo Iphan?
Na medida em que você tenha uma verticalização que é contradito ao que o Iphan determina, prevalece o Iphan.

Por que uma cidade tão rica historicamente não tem uma legislação específica para bens culturais e menos ainda um órgão voltado para essa questão.
Nós temos uma Fundação Gregório de Mattos...
Que acaba de perder o seu próprio teatro.
É... O prefeito, por exemplo, nós tínhamos 20 e tantas secretarias. Oh meu Deus do céu, concordo com você: já temos 5 anos. Mas dois anos tumultuados, um pau lascado, o PT... Não tô dizendo quem tem culpa e quem não tem culpa. Estou falando factualmente. A partir do segundo ano e meio, o prefeito separou essa coisa toda e a prefeitura volta um pouquinho. É uma das poucas prefeituras do Brasil que fez uma reforma administrativa de qualidade. Uma das poucas que está reduzindo o custeio em função dessa redução. Eu não reclamo: é pouco, precisava ter mais. É um esforço que todos nós precisamos ter pra fazer uma coisa certa.
Secretário, infelizmente o tempo não é tão largo... não é um tempo baiano...
(risos)
Mas queria fazer outra pergunta... Qual a garantia que o cidadão de Salvador pode ter de que, mais uma vez, não teremos um jogo como o de sempre? De câmaras eleitas com campanhas pagas por empresários, prefeitos eleitos da mesma forma, e a contrapartida se devolve em espaços públicos, sem que a sociedade seja efetivamente consultada? 
Eu dividiria em alguns tópicos. Primeiro, o problema político não é um problema da prefeitura do Salvador. É um problema de Brasil. Financiamentos de campanha...

Sem querer ser deselegante, não dá pra dizer: "desculpe essa suruba generalizada..."
Mais ou menos isso. A gente sabe que é mais ou menos isso. O segundo é isso: nós temos os nossos legisladores, têm que ter a coragem e o respeito com o povo que os elegeu pra fazer, primeiro, uma reforma política de qualidade. Esse negócio que existe aí de "contexto político" é, realmente, uma panacéia.

Secretário, enquanto isso não existe, isso é um problema. Se isso não envolver a população de uma maneira muito mais ampla, será novamente um jogo de senhores e esses senhores que participam desse tipo de festinha.
Mas você veja o seguinte: nós temos, infelizmente, com todos os problemas que nós temos, com toda essa panacéia, nós temos ainda uma democracia. E o povo escolhe seu mandatário. Isso, felizmente, nós temos ainda. E estamos tendo alguns exemplos muito interessantes. À medida que as pessoas tentam se perpetuar, se diz: chega, saia... O maior exemplo disso é o governo Wagner. Como aconteceu em Lauro de Freitas, que até meus amigos perderam lá a eleição para Moema (Gramacho). Então, o povo está começando a criar consciência. Agora, pra que isso aconteça, nós temos que ter grandes, grandes investimentos em educação, o povo tem que ser levado a sério...

Ok, mas o povo ser levado a sério, o povo tem que ser ouvido, as instituições têm que ser ouvidas, a Câmara, não aquele joguinho...
Recentemente, eu participei de uma audiência pública... inclusive, "o dia em que vocês me quiserem aqui, não tem problema"...

Isso aqui é uma audiência pública, tentando discutir os problemas da terceira cidade do País e primeira capital...
Exatamente. Terceira cidade em população e, infelizmente, a penúltima em renda. Uso essa oportunidade pra dizer a vocês o seguinte: estou convivendo com o prefeito João Henrique durante esse período, sei realmente que ele está determinado a criar efetivamente criar uma prefeitura mais consistente, uma prefeitura popular. Eu tive a felicidade de conviver com ele na eleição e sei que o secretariado hoje está comprometido, está junto com ele pra qualquer coisa. Nós queremos efetivamente mudar isso que você está colocando...

Que Deus nos ajude... Pra encerrar, pra não ficar dúvida, o cerne da questão: casas que tiverem que ser eventualmente desocupadas, os moradores serão indenizados?
Serão realocados. Podem até ser indenizados. Podem até ser. Mas a idéia, a princípio, é realocá-los. Mas veja só: quando eu falo, fico até um pouco preocupado, porque quando eu digo isso pode estar existindo a idéia de que isso vai ser aquilo. Em realidade, essa idéia não existe. Você sabe que tem pessoas, técnicos, profissionais, do mais alto nível, alguns não são da prefeitura, que estão espontaneamente fazendo isso, como o próprio (Antonio) Caramelo (arquiteto) que se colocou à disposição com os profissionais...

Os professores de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia, que estão se mobilizando em relação a isso, vão ser ouvidos?
Claro. Toda a sociedade tem que ser ouvida.

Vão participar?
Todos os professores de Arquitetura, de Administração, de Economia... A única coisa que eu acho é que compromete muito os projetos quando as pessoas são partidárias...

Mas as pessoas são partidárias!
Falo partidária em relação a partidos políticos. Quando as pessoas desviam o assunto do processo realmente...

Eventualmente, é essa desculpa que tem quem quer partidarizar e politizar a questão. É dizer: "aqui não tem nada a ver com partido político". Estamos discutindo aqui um problema da cidade do Salvador.
Sim... Eu sento pra discutir. Inclusive, quando eu cheguei na secretaria, eu disse: "não quero a carteira de partido de ninguém. Política lá fora." E mantive quase toda a equipe. Entendeu? Me ajudaram muito, ajudaram muito o prefeito e ajudaram a cidade muito. Pessoas que já estavam lá. Agora, técnicos que estão lá...

Infelizmente, nosso tempo está acabando e eu queria dizer que vamos continuar acompanhando essa questão agora, em junho, julho, setembro, outubro... Como estou dizendo ao senhor, que Deus nos ajude...
Estou à disposição de vocês. Vim aqui com esse objetivo. Eventualmente eu não gostaria deixar de dizer só um pequeno porquezinho, mas fica chato quando o nosso governador, que não deve ter sido bem informado, diz: "é suspeito esse decreto...".

O governador deve saber do que está falando.
Não. Eu acho que foi mal informado. Tenho admiração por ele, mas quero dizer em relação ao governador o seguinte: ele colocou até uma expressão... Esquisito! Não é esquisito.

Só pra encerrar. Quando o governador do Estado da Bahia não sabe exatamente do que se trata, quem é que vai saber?
É só alguém. Basta alguém ser alfabetizado pra ler. Decreto...

Mas, e o projeto? Primeiro o decreto e depois o projeto?
Mas isso já foi feito "n" vezes em Salvador.

Por isso que está daquele jeito.
Não, não é por isso. O Parque das Dunas é um sucesso dessa medida. Agora, a gente quer fazer o certo, o correto. A secretaria está aberta. Não tem carteira de partido pra entrar lá.
(...)
Secretário, obrigado. Voltamos a repetir: Que Deus nos ajude...
O Senhor do Bonfim também, não se esqueça, não.

Clique aqui para assistir à entrevista: 

1 comentários:

Sim, o povo destruiu a beleza de Salvador....e o governo faz nada para proteger nem melhorar a situacao. A cidade eh uma desgraca triste!

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